blog em memória da gazetilha que "circulou na cidade de Cachoeira do Arari (ilha de Marajó, Estado do Pará) no biênio 1906 / 1907. Fôlha pequena, a 3 colunas. Redigido por Alfredo N. Pereira." (cf. Carlos Rocque, "Grande Enciclopédia da Amazônia"). O editor era meu avô paterno, usava tipográfica manual no Chalé celebrizado nos romances de Dalcídio Jurandir, notadamente "Chove nos campos de Cachoeira" e "Três casas e um rio".

terça-feira, 22 de junho de 2010

de Luiz Gama a Dalcídio Jurandir, o mesmo combate.

a maré da internet me trouxe à vista duas cartas de Luiz Gama (ver adiante) e a leitura me recordou o abolicionismo com inexperada conexão à negritude do romance de Dalcídio Jurandir [Dalcídio José Ramos Pereira, filho mulato de meu avô branco Alfredo Nacimento Pereira com sua mulher negra, a admirável senhora Margarida Ramos].

ano de 2002, em Belém do Pará, meu camarada teuto-marajoara Gunter Pressler convidou-me a ir a Cochoeira do Arari participar de colóquio sobre os 60 anos do romance "Chove nos campos de Cachoeira", de Dalcídio Jurandir. Pedi a meu filho Moacir para me acompanhar na viagem em barco-motor, saida às 7 horas da noite de Belém para travessia da baía do Marajó e subida do rio Arari até a cidade de Cachoeira do Arari, antiga freguesia de N.S. da Conceição da cachoeira do rio Arari, fundada em 1747 por Florentino da Silveira Frade...

tradição popular diz que a família Frade da ilha do Marajó chamava-se inicialmente "do Frade"... Fulano ou Sicrano do Frade. Na hora do batismo: quem é pai desta criança? É filho do frade... Teria sido assim o início da familia, sem escândalo, por suposto, na genealogia da colonização a prole em tela era de irmãos leigos da ordem das Mercês, responsável pela introdução de escravos negros na famosa ilha do estuário do Amazonas para exploração da sesmaria da ilha de Sant'Ana concedida pelo donatário da capitania da Ilha Grande de Joanes (1665-1757) aos Mercedários, ano de 1689.

o romancista fala diveras vezes de Santana, em especial, nas páginas finais do romance "Passagem dos Inocentes", quando Alfredo acompanhado do tio Sebastião em viagem de canoa à vela, vindo de Belém em retorno a Cachoeira, deixa para traz a infância e começa a ser rapaz feito...

Luiz Gama não poderia imaginar, por exemplo, que sua luta iria se estender muito tempo depois da Abolição. Que, embora a Lei Áurea (1888) a República café com leite (1889-1930), a escravidão seria ainda farsa do Império no longínquo século XXI, com jornais a noticiar ainda casos de trabalho escravo no Brasil.

Que poderia dizer a gazetilha "O Arary", em Cachoeira do Arary, sobre o futuro daquele filho do capitão Alfredo Nascimento Pereira e dona Maragarida Ramos? A gazetilha poderia informar aos letrados da vila e estes no mercado, no trapiche ou à saída da igreja comentar a notícia sobre os tantos quantos negros e mulatos que ali viviam desde a chegada dos frades em Santana...

ninguém sabia quando os Mercedários chegaram ao Pará na volta de Pedro Teixeira na viagem a Quito (Equador), de 1637 a 1639, movido a 1200 remos e arcos indígenas ida e volta. Quando o braço escravo do índio rareou e a cobiça dos colonizadores aumentou houve o inevitável estouro. Os jesuítas foram os primeiros a se indispor contra a caça ao índio para escravizar o gentio; a tratar com os odiados "nheengaíbas" (índios marajoaras) invencíveis. Para os amansar Antônio Vieira buscou a lei de tutela dos índios e regulamento restritivo do cativeiro (1655). Com a dita lei foi possível fazer a paz de Mapuá [Breves], de 27 de agosto de 1659). Mas, nem bem os índios foram pacificados e logo foram expulsos os jesuítas do Pará (1661) ávido de drogas do sertão e escravos com que extrair das florestas tais riquezas.

em seguida o rei mentecapto Afonso VI de Portugal doou a Ilha do Marajó a seu secretário real Antônio de Sousa de Macedo (1665), como capitania hereditária da "Ilha Grande de Joanes" (1665): a resistência marajoara que apenas fizera tréguas nas ilhas para os jesuítas catequizarem os nheengaíbas nas aldeias de Aricará (Melgado, em 1758) e Arucaru (Portel, idem) ainda manteve colonos afastados da Ilha Grande (50 mil km²) por mais uma década e meia. Até, enfim, o português Francisco Rodrigues Pereira (1680) vencer o medo que os sesmeiros sofriam frente aos índios bravios (Aruãs e Anajás), desertores e escravos refugiados que viviam pelos centros da ilha.

A bacia do Marajó-açu (Ponta de Pedras) foi espaço da primeira sesmaria jesuítica (1686), dando lugar à catequese de índios na fazenda S. Francisco; expropriada aos padres da Companhia de Jesus e doada ao sargento-mor Domingos Pereira de Moraes dentre outros Contemplados; quando da expulsão dos Jesuitas de Portugal e colônias, em 1760, que vem de completar 250 anos.

A colonização da bacia do Arari teve começo com a fazenda particular Ananatuba (Cachoeira do Arari) e cresceu com os Mercedários e seus negros escravos de Santana e depois rio acima na fazenda das Mercês...

a história dos Mercedários começou muito antes do descobrimento do Novo Mundo. Ela está ligada à Amazônia através da Conquista do Peru e a luta entre castelhanos e portugueses, no âmbito do tratado de Tordesilhas (1494) pelo domínio do rio Amazonas. Teve início na idade média, no contexto da luta entre cristãos e mulçumanos. O militar francês Pedro Nolasco, depois santo católico, havia cuidado particular com os cativos; certa vez ele teve um sonho bizarro no qual a Virgem o mandava organizar um ordem militar para amparo dos que viviam em cativeiro.

No começo do século XII a Península Ibérica se achava ocupada e dominada pelos Mouros mulçumanos invasores e os cristãos estavam oprimidos. Pedro Nolasco longe de levar a sério o sonho comentou com rei Jaime o que lhe tinha ocorrido e ao se confessar com São Raimundo Penaforte narrou o estranho sonho que tivera à noite. Para espanto do primeiro o confessor também revelou ter tido sonho idêntico na mesma noite. Com espanto e sem mais hesitar o futuro santo da igreja católica meteu mãos à obra. Nasceu assim com auxílio da coroa de "Espanha a Ordem Real e Militar de Nossa Senhora das Mercês da Redenção dos Cativos" ou "Ordem de Nossa Senhora das Mercês", em 1223. Pedro fez os três votos ordinários (pobreza, castidade e obediência) e acrescentou um quarto, de sacrificar bens e a liberdade, se necessário fosse, pela redenção dos cativos. São Raimundo, por sua vez, organizou a regra da nova ordem. Como esta ordem religiosa e sua congênere Companhia de Jesus vieram a ser detentoras de consideráveis riquezas e senhoras de escravos na Amazônia colonial portuguesa é causa de admiração estudo para muitos, menos as populações locais de Santana, Cachoeira, Ponta de Pedras e outras na ilha do Marajó. Vai daí que teria sido interessante a gazetilha do capitão Alfredo Pereira publicar as cartas de Luiz da Gama, mas, com certeza, ainda que o redator geral pudesse ele não faria por uma questão de sobrevivência no cargo de secretário da Intendência Municipal, sob direção do senhor major Bento Miranda Lobato, fazendeiro do Arari.


A INCRÍVEL HISTÓRIA DO MENINO VENDIDO COMO ESCRAVO PELO PRÓPRIO PAI E QUE SE TORNOU CAMPEÃO DA LIBERTAÇÃO DOS CATIVOS DO BRASIL.

Sob inspiração das idéias de Luis Gama, na segunda metade da década de 1880, formou-se uma ampla frente abolicionista — envolvendo escravos, a pequena-burguesia urbana, a jovem burguesia industrial, o proletariado e setores da burocracia de Estado. Um dos catalizadores desse movimento emancipador foi a ação dos próprios homens e mulheres escravizados. Naquele período houve um aumento astronômico no número de rebeliões e de fugas. Estima-se que 1/3 dos 173 mil escravos tenha se evadido das fazendas paulistas apenas nos dois últimos anos que antecederam a abolição.

Leia, abaixo, a pungente carta autobiográfica escrita por Luiz Gama e endereçada ao seu amigo Lúcio de Mendonça. Ela deveria servir de subsídio para elaboração de um verbete que comporia um Almanaque Literário, editado em 1881.

__________________________________________________________________

São Paulo, 25 de julho de 1880

Meu caro Lúcio

Recebi o teu cartão com a data de 28 do pretérito.

Não me posso negar ao teu pedido, porque antes quero ser acoimado de ridículo, em razão de referir verdades pueris que me dizem respeito, do que vaidoso e fátuo, pelas ocultar, de envergonhado: aí tens os apontamentos que me pedes e que sempre eu os trouxe de memória.

Nasci na cidade de S. Salvador, capital da província da Bahia, em um sobrado da rua do Bângala, formando ângulo interno, em a quebrada, lado direito de quem parte do adro da Palma, na Freguezia de Sant'Ana, a 21 de junho de 1830, por as 7 horas da manhã, e fui batizado, 8 anos depois, na igreja matriz do Sacramento, da cidade de Itaparica.

Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô de Nação), de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã.

Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa.

Dava-se ao comércio — era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito.

Era dotada de atividade. Em 1837, depois da Revolução do dr. Sabino, na Bahia, veio ela ao Rio de Janeiro, e nunca mais voltou. Procurei-a em 1847, em 1856 e em 1861, na Corte, sem que a pudesse encontrar. Em 1862, soube, por uns pretos minas que conheciam-na e que deram-me sinais certos, que ela, acompanhada com malungos desordeiros, em uma "casa de dar fortuna", em 1838, fora posta em prisão; e que tanto ela como os seus companheiros desapareceram. Era opinião dos meus informantes que esses "amotinados" fossem mandados por fora pelo governo, que, nesse tempo, tratava rigorosamente os africanos livres, tidos como provocadores.

Nada mais pude alcançar a respeito dela. Nesse ano, 1861, voltando a São Paulo, e estando em comissão do governo, na vila de Caçapava, dediquei-lhe os versos que com esta carta envio-te.
Meu pai, não ouso afirmar que fosse branco, porque tais afirmativas neste país, constituem grave perigo perante a verdade, no que concerne à melindrosa presunção das cores humanas: era fidalgo; e pertencia a uma das principais famílias da Bahia, de origem portuguesa. Devo poupar à sua infeliz memória uma injúria dolorosa, e o faço ocultando o seu nome.

Ele foi rico; e, nesse tempo, muito extremoso para mim: criou-me em seus braços. Foi revolucionário em 1837. Era apaixonado pela diversão da pesca e da caça; muito apreciador de bons cavalos; jogava bem as armas, e muito melhor de baralho, amava as súcias e os divertimentos: esbanjou uma boa herança, obtida de uma tia em 1836; e, reduzido à pobreza extrema, a 10 de novembro de 1840, em companhia de Luiz Cândido Quintela, seu amigo inseparável e hospedeiro, que vivia dos proventos de uma casa de tavolagem na cidade da Bahia, estabelecida em um sobrado de quina, ao largo da praça, vendeu-me, como seu escravo, a bordo do patacho "Saraiva".

Remetido para o Rio de Janeiro, nesse mesmo navio, dias depois, que partiu carregado de escravos, fui, com muitos outros, para a casa de um cerieiro português, de nome Vieira, dono de uma loja de velas, à rua da
Candelária, canto da do Sabão. Era um negociante de estatura baixa, circunspeto e enérgico, que recebia escravos da Bahia, à comissão. Tinha um filho aperaltado, que estudava em colégio; e creio que três filhas já crescidas, muito bondosas, muito meigas e muito compassivas, principal-mente a mais velha. A senhora Vieira era uma perfeita matrona: exemplo de candura e piedade. Tinha eu 10 anos. Ela e as filhas afeiçoaram-se de mim imediatamente. Eram cinco horas da tarde quando entrei em sua casa. Mandaram lavar-me; vestiram-me uma camisa e uma saia da filha mais nova, deram-me de cear e mandaram-me dormir com uma mulata de nome Felícia, que era mucama da casa.

Sempre que me lembro desta boa senhora e de suas filhas, vêm-me as lágrimas aos olhos, porque tenho saudades do amor e dos cuidados com que me afagaram por alguns dias.

Dali saí derramando copioso pranto, e também todas elas, sentidas de me verem partir.Oh! eu tenho lances doridos em minha vida, que valem mais do que as lendas sentidas da vida amargurada dos mártires. Nesta casa, em dezembro de 1840, fui vendido ao negociante e contrabandista alferes Antônio Pereira Cardoso, o mesmo que, há 8 ou 10 anos, sendo fazendeiro no município de Lorena, nesta Província, no ato de o prenderem por ter morto alguns escravos a fome, em cárcere privado, e já com idade maior de 60 a 70 anos, suicidou-se com um tiro de pistola, cuja bala atravessou-lhe o crânio.

Este alferes Antônio Pereira Cardoso comprou-me em um lote de cento e tantos escravos; e trouxe-nos a todos, pois era este o seu negócio, para vender nesta Província.

Como já disse, tinha eu apenas 10 anos; e, a pé, fiz toda viagem de Santos até Campinas.

Fui escolhido por muitos compradores, nesta cidade, em Jundiaí e Campinas; e, por todos repelido, como se
repelem cousas ruins, pelo simples fato de ser eu "baiano".

Valeu-me a pecha!

O último recusante foi o venerando e simpático ancião Francisco Egidio de Souza Aranha, pai do exmo. Conde de Três Rios, meu respeitável amigo.

Este, depois de haver-me escolhido, afagando-me disse: "— Hás de ser um bom pajem para os meus meninos; dize-me: onde nasceste?

— Na Bahia, respondi eu. — Baiano? — exclamou admirado o excelente velho. — Nem de graça o quero. Já não foi por bom que o venderam tão pequeno". Repelido como "refugo", com outro escravo da Bahia, de nome José, sapateiro, voltei para a casa do sr. Cardoso, nesta cidade, à rua do Comércio nº 2, sobrado, perto da igreja da Misericórdia.

Aí aprendi a copeiro, a sapateiro, a lavar e a engomar roupa e a costurar.

Em 1847, contava eu 17 anos, quando para a casa do sr. Cardoso, veio morar, como hóspede, para estudar humanidades, tendo deixado a cidade de Campinas, onde morava, o menino Antônio Rodrigues do Prado Júnior, hoje doutor em direito, ex-magistrado de elevados méritos, e residente em Mogi-Guassu, onde é fazendeiro.
Fizemos amizade íntima, de irmãos diletos, e ele começou a ensinar-me as primeiras letras.

Em 1848, sabendo eu ler e contar alguma cousa, e tendo obtido ardilosa e secretamente provas inconcussas de minha liberdade, retirei-me, fugindo, da casa do alferes Antônio Pereira Cardoso, que aliás votava-me a maior estima, e fui assentar praça. Servi até 1854, seis anos; cheguei a cabo de esquadra graduado, e tive baixa de serviço, depois de responder a conselho, por ato de suposta insubordinação, quando tinha-me limitado a ameaçar um oficial insolente, que me havia insultado e que soube conter-se.

Estive, então, preso 39 dias, de 1º de julho a 9 de agosto. Passava os dias lendo e às noites, sofria de insônias; e, de contínuo, tinha diante dos olhos a imagem de minha querida mãe. Uma noite, eram mais de duas horas, eu dormitava; e, em sonho vi que a levavam presa. Pareceu-me ouvi-la distintamente que chamava por mim. Dei um grito, espavorido saltei da tarimba; os companheiros alvorotaram-se; corri à grade, enfiei a cabeça pelo xadrez. Era solitário e silencioso e longo e lôbrego o corredor da prisão, mal alumiado pela luz amarelenta de enfumarada lanterna.

Voltei para a minha tarimba, narrei a ocorrência aos curiosos colegas; eles narraram-me também fatos semelhantes; eu caí em nostalgia, chorei e dormi.

Durante o meu tempo de praça, nas horas vagas, fiz-me copista; escrevia para o escritório do escrivão major Benedito Antônio Coelho Neto, que tornou-se meu amigo; e que hoje, pelo seu merecimento, desempenha o cargo de oficial-maior da Secretaria do Governo; e, como amanuense, no gabinete do exmo. sr. conselheiro Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça, que aqui exerceu, por muitos anos, com aplausos e admiração do público em geral, altos cargos na administração, polícia e judicatura, e que é catedrático da Faculdade de Direito, fui eu seu ordenança; por meu caráter, por minha atividade e por meu comportamento, conquistei a sua estima e a sua proteção; e as boas lições de letras e de civismo, que conservo com orgulho.

Em 1856, depois de haver servido como escrivão perante diversas autoridades policiais, fui nomeado amanuense da Secretaria de Polícia, onde servi até 1868, época em que "por turbulento e sedicioso" fui demitido a "bem do serviço público", pelos conservadores, que então haviam subido ao poder. A portaria de demissão foi lavrada pelo dr. Antônio Manuel dos Reis, meu particular amigo, então secretário de polícia, e assinada pelo exmo. dr. Vicente Ferreira da Silva Bueno, que, por este e outros atos semelhantes, foi nomeado desembargador da relação da Corte.

A turbulência consistia em fazer eu parte do Partido Liberal; e, pela imprensa e pelas urnas, pugnar pela vitória de minhas e suas idéias; e promover processos em favor de pessoas livres criminosamente escravizadas; e auxiliar licitamente, na medida de meus esforços, alforrias de escravos, porque detesto o cativeiro e todos os senhores, principalmente os Reis.

Desde que fiz-me soldado, comecei a ser homem; porque até os 10 anos fui criança; dos 10 aos 18, fui soldado. Fiz versos; escrevi para muitos jornais; colaborei em outros literários e políticos, e redigi alguns.

Agora chego ao período em que, meu caro Lúcio, nos encontramos no "Ipiranga", à rua do Carmo, tu, como tipógrafo, poeta, tradutor e folhetinista principiante; eu, como simples aprendiz-compositor, de onde saí para o foro e para a tribuna, onde ganho o pão para mim e para os meus, que são todos os pobres, todos os infelizes; e para os míseros escravos, que, em número superior a 500, tenho arrancado às garras do crime.

Eis o que te posso dizer, às pressas, sem importância e sem valor; menos para ti, que me estimas deveras.
Teu Luiz.

_________________________________________________________________________________

Carta-testamento escrita por Luiz Gama para seu filho

Meu filho,

Dize a tua mãe que a ela cabe o rigoroso dever de conservar-se honesta e honrada; que não se atemorize da extrema pobreza que lego-lhe, porque a miséria é o mais brilhante apanágio da virtude.

Tu evitas a amizade e as relações dos grandes homens; eles são como o oceano que aproxima-se das costas para corroer os penedos.

Sê republicano, como o foi o Homem-Cristo. Faze-te artista; crê, porém, que o estudo é o melhor entretenimento, e o livro o melhor amigo.

Faze-te o apóstolo do ensino, desde já. Combate com ardor o trono, a indigência e a ignorância. Trabalha por ti e com esforço inquebrantável para que este país em que nascemos, sem rei e sem escravos, se chame Estados Unidos do Brasil.

Sê cristão e filósofo; crê unicamente na autoridade da razão, e não te alies jamais a seita alguma religiosa. Deus revela-se tão somente na razão do homem, não existe em Igreja alguma do mundo.
Há dois livros cuja leitura recomendo-te: a Bíblia Sagrada e a Vida de Jesus por Ernesto Renan.
Trabalha, e sê perseverante.

Lembra-te que escrevi estas linhas em momento supremo, sob a ameaça de assassinato. Tem compaixão de teus inimigos, como eu compadeço-me da sorte dos meus.

Teu pai Luiz Gama