blog em memória da gazetilha que "circulou na cidade de Cachoeira do Arari (ilha de Marajó, Estado do Pará) no biênio 1906 / 1907. Fôlha pequena, a 3 colunas. Redigido por Alfredo N. Pereira." (cf. Carlos Rocque, "Grande Enciclopédia da Amazônia"). O editor era meu avô paterno, usava tipográfica manual no Chalé celebrizado nos romances de Dalcídio Jurandir, notadamente "Chove nos campos de Cachoeira" e "Três casas e um rio".

quinta-feira, 1 de julho de 2010

o velocípede de Tales de Mileto nos campos de Cachoeira

-
-

em memória do doutor Guaraciaba Gama

A exemplo de João Guimarães Rosa, cujos personagens tirados do sertão das Gerais podem se confundir a arquétipos universais; o romance dalcidiano com sua criaturada grande do Baixo Amazonas, Marajó e ilhas apresenta a peculiariedade da identificação da ficção não só com o meio ambiente e a paisagem histórica, mas também com gente de carne e osso da região evidenciando o contraste étnico e de classes da sociedade ribeirinha complexa na Amazônia atlântica.

Graças a várias pesquisas arqueológicas e antropológicas, hoje se sabe que a diferença de classes e o choque cultural entre etnias diversas não começou com a conquista e colonização das regiões amazônicas. A presença estrangeira e a disputa imoderada entre potências colonias, todavia, interrompeu e esfacelou o processo civilizatório neotropical que se achava em curso entre os anos de 400 e 1498 (viagem secreta do cartógrafo real Duarte Pacheco Pereira ao Pará para observações astronômicas capazes de atestar a posse do Brasil por Portugal, a ser "descoberto" por Cabral em acordo com o tratado de Tordesilhas de 1494). Pelo tratado entre Espanha e Portugal, homologado pelo papa Alexandre VI, a linha tordesilhana de limites projetada a 370 léguas a oeste de Cabo Verde; viria supostamente passar sobre Belém do Pará e Laguna (Santa Catarina). Sendo assim, faz todo sentido do mundo a viagem secreta do "cosmógrafo d'El-Rey" ao Pará e, então; a baía do Marajó se repartia entre os Reis Católicos e Sua Majestade Fidelíssima...

Uma reta tangente ao forte do Presépio (1616) perpendicular ao círculo estuarino Amazonas-Pará, passando cerca à ponta do Maguari (Soure), coincide com a noção histórica da "linha" de Tordesilhas... Faz sentido a tal viagem secreta preparatória ao "descobrimento" do Brasil e explicaria o erro topográfico e a dúvida do espanhol Vicente Pinzón (1500), cuja notícia do "río Santa María de la Mar Dulce" (Amazonas) e da "isla Marinatambalo" (Marajó), foi mantida em segredo na hipótese de que se acharia no quinhão português.

Quer dizer, o Cabo Norte (Amapá) com a boca do Amazonas e o arquipélago do Marajó rio acima até o oceano Pacífico, aos olhos da Península Ibérica e da Santa Sé fazendo figura da ONU para a cristandade da época dos Descobrimentos Marítimos; era tudo direito territorial de Castela, senhora das Índias Ocidentais; em ardido acordo com Lisboa, dona das Índias Orientais. Entretanto, de fato dentro do mato faltava combinar com os índios senhores da realidade de rios e floresta nunca dantes conquistados: mas estes nativos, envoltos pela polêmica de Las Casas e Sepúlveda acerca da questão em saber se índio tem alma ou apenas é ser da natureza, tal qual como as plantas e os bichos; eram ou não sujeitos de direito...

Em santa ignorância os índios nada sabiam dos descobrimentos e das lutas intestinas da Europa. Por acaso, de "Marinatambalo" em fins de janeiro de 1500 Pinzón sequestrou e levou para Hispaniola (Santo Domingo, Antilhas) os primeiros 36 "negros da terra" (escravos indígenas)... 439 anos depois, um filho de branco descendente de cristãos-novos e negra descendente de escravos nascido naquele ilha, carinhosamente apelidado de "índio sútil" por seu camarada Jorge Amado da Bahia de todos os santos e orixás; escreveu o primeiro romance sociológico brasileiro, "Marinatambalo", escrito em 1939 e publicado oito anos depois com título de "Marajó" (1947).

Em viagem pelas ilhas aquele "índio" mulato rabiscava o calhamaço que viria a ser o romance "Chove nos campos de Cachoeira" refeito na velha aldeia dos Iona (joanes, na corruptela portuguesa; "elevada" a vila de Monforte (1758) por édito pombalino, vila de Salvaterra sob jurisdição de Soure). Onde também surdiu-se pela pena do escritor o dito "Marinatambalo"...

Eu ignoro quando e onde o marajoara Dalcídio José Ramos Pereira [registro de nascimento no Cartório Malato, de Ponta de Pedras, ano de 1910; como "Darcídio José Ramos"] adotou o nome literário de Dalcídio Jurandir... Sei entretanto que a mãe, dona Margarida Ramos foi uma mulher extraordinária lutadora contra preconceitos raciais intensos no lugarejo, que não se rendeu à pobreza do meio incentivando seus filhos a lutar pela própria educação e ascensão social: todos seus filhos e filhas, que foram seis, tiveram educação (exceção de uma menina que morreu afogada em tenra infância e faria parde do drama de Alfredo). Ela foi conforme costume popular grande contadora de estória, enquanto o pai do escritor, capitão da Guarda Nacional Alfredo Nascimento Pereira, rábula, secretário da Intendência sob governo do fazendeiro Bento de Miranda Lobato, fogueteiro e editor da gazetilha "O Arary"; era o historiador da casa...

reza a lenda sacaca (Iona) que há muito tempo os índios viram uma estrela cadente despencar do alto do céu e ir de encontro ao lago Guajará, no meio dos campos, onde ao bater n'agua explodiu... Diziam os antigos pajés que pelas bordas do lago encantado foram achadas "pedras de raio" [uma pedra de raio achada em sítio arqueológico dentre outras que foram levadas embora estava no Museu do Marajó, na coleção organizada pelo padre Giovanni Gallo]. Destas pedras de raio foram feitos machados com preciosos poderes mágicos: o lago é lugar sagrado de iniciação de pajés sacacas (os verdadeiros, na mais antiga tradição marajoara dos pajés de sete fôlegos), o Guajará tem comunicação subterrânea com o rio Paracauari em cujas águas existe o Caldeirão com seu portal ao mundo do fundo, reino na Encantaria aonde vem muitos mistérios do grande e profundo Mar...

Mas e o significado do nome "Jurandy" ou "Jurandir" que o jovem Dalcídio José adotou? O que tem a ver com a história e aonde vai findar o velocípede de Tales de Mileto, ou melhor do menino Guaraciaba filhos dos Gama marajoaras?

Comecemos por Guaraciaba, índio branco e parteiro de muita gente e muita história... Guaraci em língua tupi é a "mãe dos viventes" ("wara' ou "ara", a estrela Sol; e "cy", mãe, fonte, origem). O nosso Tales de Mileto de Cachoeira, pois, teve nome luminoso abençoado pelo deus ou deusa solar de muitos povos e culturas na Terra... Já o seu colega de escola virou "Jurandir" não sei dizer se talvez aconselhado por seu babalorixá Bruno de Menezes. O certo é que este nome também é tupi e nos mostra o quanto aquelas gerações foram cuidadosas em se naturalizar com a terra que lhes deu identidade e sustento.

Em tupi através da língua geral Nheengatu, "aba" é o homem, o ser humano; filho de Guaraci... E Jurandir é um ser vindo do céu para a terra dos homens. Terá dona Margarida entre outras estórias contado a seu filho a lenda da estrela do lago Guajará? Eu não sei. Mas que Marajó é terra de índios sutis disto não resta a menor dúvida... Diz a arqueóloga brasileira Denise Schaan: "Os primeiros cacicados amazônicos surgem na ilha de Marajó, onde técnicas
de manejo de rios e lagos – com a construção de barragens e escavação de viveiros de peixes – buscavam maximizar a pesca em áreas onde inundações periódicas transformavam os campos em locais extremamente propícios para a piracema (...) produzindo uma das mais sofisticadas tradições ceramistas das Américas".

José Saramago achava, com razão, que é o presente que explica o passado. Não ao contrário. Ele concorda com a "Teoria da História do Brasil", de José Honório Rodrigues, onde se lê que a História como Deus não é para os mortos, mas sim para os vivos... O historiador esclarece que aos olhos de Deus todos estamos vivos. E que aos olhos da História são as sucessivas gerações que dão a "última palavra"... Uma releitura da "História do Futuro", do payaçu Antônio Vieira - tão impregnada das primeiras impressões do cenário da invenção da Amazônia em cuja luz o polêmico imperador da língua portuguesa descortinou a Antiguidade - talvez nos surpreenda com a coincidência do método entre mentalidades díspares como as supra citadas.

hoje temos impressão de que se está a descobrir o passado distante de umas das mais interessantes regiões da Terra aonde parece ter vindo dar à praia ecos distantes de vários naufrágios em busca de renascimento. Tales de Mileto, ou seja Guaraciaba; como numa lenda do velho Egito partiu de retorno ao Sol infinito para o enredo de novas existências. Quem sabe? O próprio Alfredo do ciclo romanesco Extremo Norte, que rendeu o primeiro prêmio Machado de Assis (1972) a um autor amazônico; passa geralmente como alter ego de Dalcídio Jurandir. As cidades ribeirinhas de Cachoeira do Arari, Ponta de Pedras, Belém e outras estão habitadas por moradores da realidade transfigurada nas páginas mágicas de "Chove nos campos de Cachoeira", "Marajó", "Três casas e um rio", "Belém do Grão-Pará", "Passagem dos Inocentes', "Primeira Manhã", "Ponte do Galo", "Os habitantes", "Chão dos Lobos" e "Ribanceira" ainda permitem o jogo de identificação entre personagens de literatura e conhecidas pessoas da sociedade local.

É claro que a trama do romance à contra luz da geografia social produziu certos equívocos e algum mal estar. Dentre a galeria de personagens dalcidianos e a coincidência de feição com contemporâneos do autor merece atenção um menino de classe rica figurado no romance como Tales de Mileto invejado por Alfredo e outros colegas de escola por ser proprietário do único velocípede da vila de Cachoeira imortalizada por Dalcídio Jurandir. Ora, no plano da realidade o provecto e respeitável cachoeirense Guaraciaba Gama, médico obstetra e presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, se identificava de bom humor com o personagem. Nada mal, afinal de contas, se da escolinha do professor Chiquinho Leão saíssem personagens para povoar a literatura. O velocípede de Tales de Mileto perpetua a memória do doutor Guaraciaba nas páginas de Dalcídio Jurandir transformando a inveja infantil num retrado de álbum da grande família marajoara em preto e branco (para não dizer a divisão de classes na maior ilha fluviomarinha do planeta).

Caso a educação patrimônial numa ilha-monumento do Brasil e da humanidade, que é o território Marajó no Estado do Pará; houvesse feito tudo que é preciso e que a gente marajoara merece todos nós poderiamos compreender e defender este tesouro - só se ama o que se conhece -, e não pareceria estranho comparar mestre Guaraciaba ao primeiro filósofo do Ocidente.

Tales de Mileto foi o primeiro filósofo ocidental, ele tinha ascendência de mercadores da Fenícia e nasceu numa antiga colônia da Grécia chamada Mileto, na atual Turquia, cerca do ano 625 e teria falecido em 558, antes de Cristo. Por esta época grupos nômades de paleo índios vagavam na floresta amazônica e a civilização romana ainda estava no nascedouro. Tales foi um dos 7 sábios da Grécia, fundador da Escola Jônica que considerava a água como origem de todas as coisas, seus discípulos embora discordassem quanto à “substância primordial”, concordavam com ele sobre a existência de um “princípio único" da natureza.

Na opinião de alguns, com base no pensamento de Tales de Mileto o Naturalismo esboçou os primeiros passos teóricos do evolucionismo: "O mundo evoluiu da água por processos naturais" disse o sábio de Mileto, aproximadamente há 2460 anos antes de Charles Darwin e de Alfredo Wallace. Tales foi seguido por Empédocles de Agrigento na teoria evolutiva: "Sobrevive aquele que está melhor capacitado". Tales foi o primeiro a explicar o eclipse solar, ao verificar que a Lua é iluminada por esse astro. Segundo Heródoto, ele teria previsto um eclipse solar em 585 a.C. Segundo Aristóteles, tal feito marca o momento em que começa a filosofia. Astrônomos modernos calculam que esse eclipse se apresentou em 28 de Maio do ano mencionado por Heródoto.

Se, de fato, o menino Guaraciaba Gama com seu olímpico velocípede pareceu a Dalcídio José corresponder ao perfil de Tales traçado na aula do professor Chiquinho Leao só nos resta lamentar que a escola de hoje (com tantos meios técnicos auxiliares) não pareça capaz de fomentar novas vocações intuitivas e racionais tais como Tales de Mileto e o inventivo Alfredo denunciador da educação alienadora, no magistral "Primeira Manhã" que os educadores de cidadãos para a democracia precisam reler.