blog em memória da gazetilha que "circulou na cidade de Cachoeira do Arari (ilha de Marajó, Estado do Pará) no biênio 1906 / 1907. Fôlha pequena, a 3 colunas. Redigido por Alfredo N. Pereira." (cf. Carlos Rocque, "Grande Enciclopédia da Amazônia"). O editor era meu avô paterno, usava tipográfica manual no Chalé celebrizado nos romances de Dalcídio Jurandir, notadamente "Chove nos campos de Cachoeira" e "Três casas e um rio".

sábado, 6 de fevereiro de 2010

meu encontro com Dalcídio e Euclides

Meu encontro com Dalcídio e Euclides

História rápida sobre como o "Marajó", de Dalcídio Jurandir, e "Os Sertões", de Euclides da Cunha mudaram a vida de um caboquinho nascido e criado nas bocas do Amazonas. Isto ocorreu nos ventos da revolução de 1930, que deram sorte das primeiras letras ao pirralho por obra duma professora normalista novinha em folha, filha de imigrantes da ilha da Madeira (Portugal), educada e diplomada em Belém do Pará e mandada às Ilhas pelo interventor Magalhães Barata lecionar na vila de Itaguari [Ponta de Pedras]. Com tal providência uma geração de marajoaras deu salto na vida local com benefícios até hoje.
O cara em apreço é mestiço amazônico de índios, cristãos novos e bárbaros celtíberos. Um típico celticotapuia, assumido que nem Euclides da Cunha; cuja alma barbaresca esconde-se debaixo da cara pálida. Ele, todavia, é caboquinho de sorte, embora vivendo ilhado no extremo Norte teve professora bacana e uma avó fora de série. Suas duas mestras nos estreitos caminhos da estória geral do Curralpanema: isto é, uma região imaginária do fim do mundo; entre o arquipélago dos Açores e a África encantada na diáspora para a boca do Rio Mar, a uma maré de distância da Cidade do Pará. A professora era moça bonita, porém durona e não dava folga a namorados. Muito menos a alunos gazeteiros, já a avó ao contrário doutras velhas que entoxicam os netos com gulodices e estórias de papai noel; deslendava fortes coisas a fim de tirar o pirralho do destino cruel dos ribeirinhos à margem da História. A rude vida que ele, por ignorância, amava e buscava sendo morador do sítio de seus pais, herdado do falecido avó galego no interior da ilha. Aquilo, para o menino, era uma ponta de terra no Paraíso. Não via ainda o purgatório de seus semelhantes em paragem tão longe de tudo e tão perto do inferno.
Coitadas da mãe, irmãs, avó e tias do caboco! O pai, como era filho da índia morta, não achava lugar melhor para viver com sua gente. Este um tinha sangue cabano e razão suficiente para escolher o fim do mundo para morar, mas lhe faltavam meios e incentivos junto com outros pequenos sitiantes para tocar a vida. Os donos deste mundo não pensavam jamais nos cabocos a não ser em dia de eleição. Restava ao pirralho inventar coisas e viagens à toa. Ele caçoava de medos ancestrais de seus iguais, tal qual curupira, Cobragrande, matinta pirera e outros fantasmas. Por exemplo, certos filhos de "boto" que ele conhecia também sabia dos verdadeiros responsáveis da paternidade e não achava graça de folclore como este. A mãe o queria no seminário a fim de ser padre, mas o cara puxou pra trás... O diabo havia rabo de saia e figura de linda morena que o pirralho namorava sem que a mesma soubesse. Odiava perder hora de banho coletivo no igarapé ou do jogo de bola na rua para ir ao catecismo na igreja, a força de ralhos tremendos. Por essas e outras, cedo ganhou fama de herege. Mais tarde, pelo simples fato de ser a favor da reforma agrária e gostar de falar em cooperativas foi tachado de "comunista" avant la lettre. Como, de fato, quando tomou partido dos operários lesados na partilha da Civilização, assim que ele teve juízo do prejuízo histórico da classe trabalhadora na divisão mundial do trabalho.
São enormes os perigos desta vida do ilhamento geral do fim do mundo, periferia da periferia; no Extremo Norte amazônico. Não é brincadeira, não! Sorte do pirralho que ele tinha avó indígena da ilha do Marajó e outra postiça (filha da índia morta no parto do pai caboco) que era memória viva da família tapuia. Gente pobre, porém decente e que não é babaquara. De besta só tem a cara... Além de tudo, a velha senhora zeladora da memória do lugar gostava de ler romances e folhetins para contar história aos netos. Era ela uma devota católica peculiar que conservava tradições pagãs de seu povo original, conhecedora exímia da propriedade mágica de ervas que cultivava no quintal da casa. A avó tivera comadres concumbinas de vigários e criticava o luxo da Igreja e o celibato de padres e freiras, os quais sem filhos e netos próprios viviam a meter bedelho na família dos outros, sendo ela mesma celibatária por livre arbítrio para criar filhos alheios... Mas, espera aí! Conta primeiro: como é que a velha era avó solteira? Resposta simples, nunca foi mãe; porém ela e a irmã adotaram o irmão recém nascido, órfão da índia morta durante o parto. E depois outros que precisavam ter uma mãe. Ora, não há solteironas que aveza de criar filhos de gato e cachorro? Pois, estas duas da vila Itaguari gostavam de criar filho de gente. Sorte do neto, que aprendeu humanidades na prática e ao vivo...
Assim, a história do caboco começa pelo fim da vida da índia catecúmena sua avó. O cara enquanto teve rédeas sob pulso forte de sua mãe, branca branca; procurava imitar o pai idealizando e invejando a pretos e cabocos, supostamente "livres" para ir e vir na lida das varjas, travessias da baía para a Cidade e viagens mil para o grande, o magistral e fundamental lago Arari, dito apenas 'O Lago' pelos conhecedores. Mas, tão logo ele ficou taludo, haja a desembestar pelos caminhos do mundo, queria porque queria ser caboco de parte inteira. E assim foi. O suficiente para saber o que é um verdadeiro caboco ("extraído do mato" caa bok) brasileiro, cidadão do mundo.
Negócio seguinte (salvo esquecimento involuntário e um tico de invento, conforme costume desta gente): pregou um grande susto à avó e à velha tia; quando alta noite lhes bateu a porta chegando de um naufrágio no rio durante trovoada. Entrou em casa pingando água da roupa como saído do meio da noite... Com ele vinha um pobre pretinho, companheiro do desastre, cujo susto estampado no rosto e os olhos arregalados diziam tudo de boca fechada. O cara disse à velha com sorriso amarelo:"Não se assuste mea Vó, tá tudo bem...". A tia,"sá mulhé, este pirralho vai acabar mal, que Deus o livre". Tarde da noite o cara estendeu a vela molhada da canoa curicaca [pequena canoa de pesca de mastro móvel] e guardou os remos no quintal, entre grilos, sapos e uma curuja que dormia em riba do pé de sapotilha e parecia caçoar do besta, piando no galho:"Arre égua! Jacurutu, tu tu tu"...
Dia seguinte, na hora da sesta, a velha se aproximou do neto com um sorriso enigmático nos lábios e um livro nas mãos que ela havia guardado no fundo do bau, com o maior cuidado como uma bíblia sagrada. Disse que ele devia ler aquilo com atenção, a capa dizia "Marajó", Dalcídio Jurandir... Não foi fácil. Primeiro, o cansaço do naufrágio na véspera para nadar na correnteza da maré salvar o pretinho, levar a canoa alagada para beira, pegar remos e a maleta com dinheiro e documentos; ainda lhe pesavam e o sono da noite fora curto. Depois, o almoço e o "vinho" de açaí na quentura do meio dia derrubam qualquer caboco na rede. Daí o rito da sesta nas paragens equatoriais. Pior, o rapaz tropeçava, horrivelmente, nas letras apesar do louvável esforço que tivera sua professora. Mas, o imprevisto presente abriu-lhe os olhos do cara cheios de curiosidade. Nem que ele quisesse ler depressa não conseguiria... Lutou bravamente contra o parco entendimento das palavras, tal qual na correnteza naquele outro naufrágio em sua vida; o sono lhe pesava e puxava para o fundo do rio.
Havia estirões que o cara cochilava com o livro aberto às mãos e, desta vez, ele mergulhava em sonho linhas adentro a reinventar a estória. Conversa vai conversa vem com Missunga e Alaíde no sítio Paricatuba, mas a menina que o cara namorava secretamente encarnava a pecadora Orminda e o incesto cometido pelo coronel Coutinho com a filha bastarda desatava a trovoada em riba do rio Marajó Açu... O caboquinho fugia em canoa a remo para o Lago; que nem quando ele costumava ir filar café na barraca do compadre Manduquinha e comadre Didi para se salvar do tédio daqueles dias imensos do fim do mundo. Ficção e realidade se misturavam no naufrágio... Enfim, a avó chamou o neto para tomar café. Salvou-o do encanto no reino da Boiúna. O cheiro exalava por toda a casa, café plantado no quintal, torrado e pilado ali mesmo pelas duas irmãs. Foi quando ele foi solenemente informado de que o livro em tela fora escrito por um certo tio morando no Rio de Janeiro. Onde esse tal rio? Longe, disse a tia. Cadê o tio? Não voltou mais desde que que passou uns tempos no presídio São José e foi-se embora acusado de subversivo... Desgosto do velho pai devoto de Santa Rita de Cássia. A coisa começava a ficar quente. Dentre outras coisas, porque se explicava a razão da solteirice das velhas: uma, porque o noivo era alfaiate e tocava violão mal e porcamente, a ponto de não conseguir cantar e tocar ao mesmo tempo... A avó era perfecionista por excelência. Ela nunca encontraria alguém para casar com ela em toda redondeza da vila de Itaguari. A outra se apaixonara por um certo Tobias, mas este amava mais a revolução comunista e foi embora para o dito Rio de Janeiro: um sumidoro de corações e mentes exiladas das províncias... Nunca mais a tia soube o que sucedeu ao noivo. E o tio escritor? Este um também pegou o "Ita do Norte", que nem o desaparecido Tobias, porém do outro lado ele escrevia para todos e para ninguém como acabava de ver.
Desde aquela tarde o caboquinho não foi mais o mesmo, enquanto o gosto pelas viagens e a lida dos sítios aumentasse; dali em diante tudo havia explicação pela história e a imaginação abria caminhos para a revolução social. Foi com esta súbita transformação que a vila tomou ciência de que o filho do Rodolfo tomara gosto pelos livros. Então, ao saber disto o compadre Guilherme coletor de rendas, que adorava "Os Sertões", como mil recomendações, emprestou o livro e fez apresentação de Euclides da Cunha, o maior entre os maiores escritores brasileiros, garantiu. Ah, que tormento! Que deslumbramento quando o caboquinho entrou no arraial de Canudos... Sentiu cheiro de pólvora no ar. Viu pedras se transformar em combatentes até o último tiro. Canudos não se rendeu. O encontro de Euclides e Dalcídio devassa as fronteiras das regiões amazônicas, une o Norte e o Nordeste; agiganta o Brasil para apressar o parto da pátria comum latino-americana. Aquele morre, este nasce no mesmo ano de 1909: o Rio de Janeiro foi berço do autor de "À margem da História" e túmulo gentil do romancista do Extremo Norte; e justo que agora nas comemorações de dois confundidos centenários de vida e morte o Brasil descubra caminhos e pontes que estes dois arquitetos do pensamento brasileiro, por necessidade e acaso, construiram de Norte a Sul. ___________ José Varella – Belém do Pará, 24/01/2009

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