blog em memória da gazetilha que "circulou na cidade de Cachoeira do Arari (ilha de Marajó, Estado do Pará) no biênio 1906 / 1907. Fôlha pequena, a 3 colunas. Redigido por Alfredo N. Pereira." (cf. Carlos Rocque, "Grande Enciclopédia da Amazônia"). O editor era meu avô paterno, usava tipográfica manual no Chalé celebrizado nos romances de Dalcídio Jurandir, notadamente "Chove nos campos de Cachoeira" e "Três casas e um rio".

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Desenvolvimento do Marajó: pra quem?

Segundo a cultura popular, há negócios que são como engordar sapo pra cobra comer... No caso, invés da gente se empoderar da Cultura Marajoara revelada pela arqueologia restauradora da doutora Denise Schaan mediante um ecoturismo sustentável de base comunitária, que nem a Costa Rica, por exemplo; o complexo de búfalo em “over” dose. Invés do espaço histórico social da pesquisa criativa do professor doutor Agenor Sarraf; as “ilhas” dos Marajós mostram notável paradoxo que todo mundo de fora vê logo à primeira vista: a pobreza ilhada em meio ao mar de riquezas. Porém os ricos marajós da vida não enxergam, nem a cacete, a contradição das desigualdades e o crônico empobrecimento induzido.
Enquanto funcionário do serviço exterior, servi durante cinco anos em Caiena. Onde vi de perto o outro lado da fronteira do Oiapoque com a crucial participação de ribeirinhos do Amapá e Pará da imigração clandestina e mais contravenções acompanhantes do tráfico das Guianas com o norte do Brasil, entre os anos de 1985 e 1990. Foi lá que me dei conta da REBRACA (repatriamento de brasileiros de Caiena) de 1974, em plena ditadura militar. Uma história que envergonha a diplomacia do Brasil e da França, que poucos em Brasília e Paris conhecem, com uso descartável de imigrantes brasileiros como mão de obra barata na construção do centro espacial europeu em Kuru e posterior deportação em condições pouco elogiosas para imagem dos dois países. Ademais, operação inútil posto que as motivações sociais e econômicas da imigração permanecem até hoje sem que se tenha enfrentado de frente.
A primeira parte daquela história marginal eu sabia, mais ou menos, como nativo da ilha do Marajó. Até um barco que fora orgulho e ruína de meu avô, imigrante da Espanha no Pará, enquanto ele teve haveres e vida ao ser vendido trocou de nome e caiu na rede de contrabando a fazer figura de barco de pesca para carregar muamba, o melhor negócio que podia haver na época. Mais tarde, por acaso, como repórter de jornal na cidade grande, entre outras coisas escrevi breve folhetim “A face oculta do Ver O Peso” e fiz parte da intrigante coluna diária o “Inferninho do Contrabando”, editada no “Jornal do Dia” pelo repórter Angelo Giusti. Capítulo do retorno do café pelo caminho donde veio: dos cafezais de São Paulo para Caiena e Paramaribo. Donde as primeiras foram furtadas para ser plantado no Pará, pela tropa de guarda costa de Francisco de Mello Palheta, no século XVIII, à caça de escravos fugidos, desertores e índios bandoleiros do lado brasileiro, em disputa entre as duas colônias europeias na Amazônia.
Claro está que só a qualidade de servidor consular já me seria bastante a querer mudar a péssima imagem de meu país no território ultramarino da vizinha Amazônia francesa. Mas, se coloquem em meu lugar: além de modesto vice-cônsul em posto de terceira categoria, caboco marajoara de beiço roxo de tinta de açaí tem mais que se doer pelo fado dos irmãos, refugiados econômicos, e batalhar para mudar a cruel situação criada pelo êxodo rural. O diabo é achar quem o escute e o ajude a mudar uma história destas, corrompida da velha rede rasgada de mil e uma prostituições enquanto as luzes de Paris seduzem as burguesias do Rio de Janeiro e São Paulo celeiro de altos funcionários da tecnoburocracia de Brasília. Se nem mesmo a migração intensiva do Maranhão e Piauí ao pobre Pará trabalhador não acha remédio. Sim, se nossos repatriados viessem do Japão talvez algum político imaginasse projeto de reinserção à economia nacional. Não é este porém o caso dos repatriados das Guianas no norte do Brasil.
Por isto, quando voltei definitivamente ao país retomei antiga militância de Quixote ao lado de Camillo Viana na SOPREN. Mais tarde fui bater à porta da UFPA para oferecer ajuda ao recém-eleito prefeito de Ponta de Pedras (eu não o conhecia pessoalmente), então ele era secretário-geral da universidade federal. Inventamos um tipo de contrato de risco mediante apoio de representante paraense no Senado. O que motivou o Ministério das Relações Exteriores a abrir exceção e ceder o inquieto oficial de chancelaria a fim de prestar assessoramento ao município (sem ônus para este, por si só um obstáculo considerável) com louvável desculpa de um projeto integrado com a associação de municípios do Arquipélago, a AMAM. Naturalmente, muito colaborou para decisão superior informações do Consulado e da repartição do MRE em Belém, favoráveis à tentativa que se iria improvisar sobre a base uma experiência excepcional de vivência do servidor em tela, conhecedor da crua realidade humana de grande parte das fronteiras amazônicas.

O arranjo meia-sola, entretanto, foi um fracasso do ponto de vista local. E nenhum TTC universitário se interessa por “cases” de insucesso: pena, porque desta maneira a história se repete até à náusea... Primeiro, o projeto de criação duma fundação com nome do mal amado comunista “Dalcídio Jurandir”, filho da terra, na vã tentativa de levantar a autoestima municipal (se o homenageado apesar de comunista declarado fosse o bem amado Jorge Amado ou o famoso Oscar Niemeyer, vá lá! Mesmo assim o projeto foi aprovado por unanimidade pela Câmara de Vereadores), mas após curta neutralidade passou a receber oposição pessoal da presidente da Câmara, jovem e simpática senhora da sociedade agropecuária, herdeira das sesmarias. Então, decidida a ser prefeita e que começou a suspeitar que semelhante coisa seria obstáculo a seu desejo político.
Debalde tentativas de conciliação! O temeroso prefeito rendeu-se, precocemente, à pressão dos senhores do gado e nomeou como inimigo o médico do hospital da SESPA (conhecido aborteiro, que sozinho com sua clínica clandestina em Belém derrotou coligação de nomes graúdos da oligarquia, universidade, igrejas e partidos rotulados de esquerda unidos por força das circunstâncias para levar a fazendeira e o comunitário filiado ao partido socialista ao Paço). Aos vencedores, as batatas! Ou seja, o minguado orçamento de um dos pobres municípios de IDH de fome.
Na brigalhada ambos bandos em contenda acabaram por provocar incêndio do prédio histórico do “Palácio Municipal” virando em cinza o arquivo morto e a biblioteca “Eládio Malato” com todo acervo doado pela família do jornalista. Não sem antes, o único projeto desta fase triste da minha vida, o Projeto de Execução Descentralizada (PED-Guaianá), financiado pelo PPG7 e elogiado por sua concepção inovadora, dar com os burros n'água e virar farelo da incompetência e malandragem a dar trabalho à Polícia Federal, sem ter produzido uma única semente ou pé de qualquer coisa que não seja a frondosa árvore da corrupção.

Apesar de tudo, continuando no caminho quixotesco com Camillo Viana e amigos da SOPREN inventamos, na Pró-Reitoria de Extensão da UFPA, o GDM (grupo em defesa do Marajó), em 20/12/1994. Junto com a AMAM organizamos o X “Encontro em Defesa do Marajó”, em Ponta de Pedras (28-30/04/1995), donde saiu a “Carta do Marajó-Açu” publicada na imprensa e que significou uma virada sobre a conservação da Cerâmica Marajoara, com destaque ao Museu do Marajó. No mesmo ano, organizamos receptivo à delegação de prefeitos e vereadores da Guiana francesa em visita a Belém, Soure, Salvaterra e Cachoeira do Arari. Reciprocamente, no ano seguinte delegação de prefeitos e vereadores do Marajó acrescida do presidente do Museu do Marajó, Giovanni Gallo; coordenador do campus Marajó (Soure) da UFPA, arqueólogo do Museu Paraense Emílio Goeldi, e superintendente do IPHAN.

Apesar de inúmeras conversas e explicações sobre as desventuras da vizinhança fronteiriça implicada com a imigração brasileira clandestina, a maioria dos nobres representantes jamais entendeu o que foram fazer lá no outro lado da fronteira, a guisa do que hoje se chama cooperação internacional descentralizada com méritos históricos para Pedro Simon, Leonel Brizola e João Capiberibe, respectivamente, governadores do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Amapá. Todavia, quando os pesquisadores forem a fundo poderão inscrever também nessa inovadora modalidade de relações externas entre estados e municípios, com nossa modesta articulação, os nomes de Fernando Lobato, prefeito de Santa Cruz do Arari e presidente da AMAM e do prefeito de Sinnamary e presidente do conselho geral da Guiana francesa, Elie Castor.

Seria longo listar todas ações das quais participamos para que as populações do Marajó percebam que unidos podem ir longe e, ao contrário, separados em rivais uns dos outros estão condenados a ver navios... Ouvimos de autoridade da extinta SECTAM a sentença jocosa “o GDM não existe”: o doutor não via que, na verdade, este e outros nomes de fantasia são a bandeira da resistência marajoara que vem de muita gente e muito tempo atrás e vai sempre adiante com qualquer nome que a necessidade e o acaso determinar. O melhor momento daquele famigerado GDM foi talvez quanto assinei em seu nome apresentação de documento dos Bispos do Marajó (o agnóstico amigo de padres e pastores, contanto que seja para libertação do povo marajoara), em março de 1999, clamando contra o mísero IDH do povo marajoara.

Enfim, em 7 setembro de 2003, em Santa Cruz do Arari, redigimos a “Carta S.O.S Lago Arari” assinada pelos presentes à exposição do Museu do Marajó e dirigida ao Presidente Lula. A carta teve resposta através do IPHAN e repercutiu também na moção de 8 de outubro de 2003, em Muaná, pedindo a Reserva da Biosfera do Marajó que desatou a encruada APA-Marajó e levou à criação do Parque Estadual de Charapucu (Afúa), penúltimo passo para apresentação da candidatura ao COBRAMAB (Brasília) e depois à UNESCO (Paris).
Por ironia da história, a fazendeira que queria ser prefeita de Ponta de Pedras e para isto atropelou o projeto da fundação Dalcídio Jurandir; quando eleita e convertida à religião evangélica segundo dizem, valeu-se do ilustre nome do comunista pontapedrense para barrar o batismo de moderna escola estadual no município, com que os católicos queriam homenagear bispo fundador da diocese (ainda vivo). Estes perguntavam o que Dalcídio Jurandir fez por Ponta de Pedras? Na verdade, sequer eles sabiam quem era o romancista da Amazônia e prêmio “Machado de Assis”. A culpa não é deles, evidentemente, quando se lembra que outrora a Arquidiocese de Belém incluiu o escritor de “Chove nos campos de Cachoeira” entre autores contra indicados à leitura dos católicos. Quando me perguntaram o que o GDM teria feito pelo Marajó, respondi: “nada... nem vai fazer coisa nenhuma. Quem tem de fazer são autoridades eleitas para tanto. Nós apenas somos cidadãos prontos a cobrar o que o povo tem direito”.

A marcha da resistência marajoara é pouco percebida pelos marajoaras, menos por culpa da ignorância da gente e mais pela “esperteza” de seus dirigentes. Por isto, em 2006, com o “inexistente” GDM ainda, fomos nos queixar ao Bispo de Ponta de Pedras. O qual com seu confrade da Prelazia do Marajó (Soure) foi se queixar ao Presidente Lula... Começou assim o Grupo Interministerial GEI-Marajó, na Casa Civil com a Ministra e hoje Presidenta Dilma; donde surdiu-se o “Plano de Desenvolvimento Territorial Sustentável do Arquipélago do Marajó – (Plano Marajó), em 2007; complementado pelo programa “Territórios da Cidadania – Marajó”.

No bojo disto tudo, o projeto Nossa Várzea de regularização fundiária. Uma novidade sensacional para a gente ribeirinha sem eira nem beira. Um sucesso e inovação em gestão pública em Brasília... Mas, para as elites de Belém uma coisa chinfrim ou desconhecida, como tudo mais que se refere às “distantes” ilhas fronteiras à charmosa Estação das Docas. A donos de sesmarias hereditárias uma baita confusão. Ora, se todas estas gentes parassem pra pensar viriam a tempestade em copo d'água que se faz: nem só regularização fundiária não se confunde com reforma agrária, como também o sucesso da regularização nas terras públicas da União há de tornar talvez dispensável a temida reforma das sesmarias e latifúndios da ilha do Marajó célebre pelas fazendas. Ou, então, pela desavença interna de gregos e troianos face ao poder econômico emergente da recolonização da Amazônia, em marcha com arrozeiros gaúchos corridos de Roraima para campos alagados do Marajó, não vai ter mais frito de vaqueiro pra ninguém; nem chimarrão de graça pra caboco mandado embora aos subúrbios da capital. O prezado leitor me entendeu?

Um comentário:

Unknown disse...

Caro Varella, mais uma vez trago-te meu enlevo pela solidez com que escreve sobre o Marajó. É de se lamentar, talvez, que um número limitado de pessoas tenham acesso a esse acervo que teus blogs reúnem sobre o arquipélago onde eu nasci e do qual sou nativo.
Agora há de se pontuar o seguinte: é quase imperceptível tuas quixas ao governo estadual, aos deputados - federais e estaduais, senadores e prefeitos os quais os elegemos para legislar e labutar em favor das fronteiras internas do que se entende Estado do Pará. Vejo, sim, uma carga extra de reivindicação ao governo federal, como se somente dele fosse a responsabilidade de aplicar recursos, implementar políticas públicas e outras ações que viessem ao menos reduzir o IDH vexatório da ilha.
E quando diz que a população não tem culpa. Discordo. Tem culpa sim, pois é ela que vota e é ela que deveria cobrar e não eleger mais esses roedores do nosso dinheiro que há séculos estão aí manchando ao olhar patético dos próprios que os levaram para tal situação.