blog em memória da gazetilha que "circulou na cidade de Cachoeira do Arari (ilha de Marajó, Estado do Pará) no biênio 1906 / 1907. Fôlha pequena, a 3 colunas. Redigido por Alfredo N. Pereira." (cf. Carlos Rocque, "Grande Enciclopédia da Amazônia"). O editor era meu avô paterno, usava tipográfica manual no Chalé celebrizado nos romances de Dalcídio Jurandir, notadamente "Chove nos campos de Cachoeira" e "Três casas e um rio".

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

FELIZ 2011, PONTA DE PEDRAS

FELIZ 2011:
minha Ponta de Pedras, praias do Marajó,
varjas do Paraíso e campos da memória.

À memória da “avó”
Sophia e tia Lodica.


Sejas muito feliz, minha terra de infância Itaguari! Em 2011 e todos anos pra frente. A velha “ponta de pedras” (“ita”, pedra; e “guari”, ponta; em língua-geral) da ilha do Marajó, ilha grande da minha avó Antônia, índia da Mangabeira, que eu não conheci porque ela morreu de parto do menino que foi, afinal, sobrevivente contra todos prognósticos; o meu velho pai e mestre caboco “seu” Rodolpho (com ph) Antonio (sem acento circunflexo) Pereira, filho de meu avô capitão Alfredo Nascimento Pereira, mestre escola de Muaná, rábula de Ponta de Pedras e secretário da intendência da vila da Cachoeira.

Este meu avô descendente português dos Açores e talvez do sargento-mor Domingos Pereira de Moraes, contemplado da fazenda São Francisco que foi desapropriada da missão dos Jesuítas (séc. XVIII); foi redator da gazetilha “O Arary”, patriarca duma prole marajoara extensa com suas três mulheres: a minha avó indígena, que foi sua aluna de ABC; dona Margarida Ramos, afrodescendente que lhe deu meia-dúzia de mulatos, dentre os quais o grande Dalcídio Jurandir (nascido Darcidio, batizado Dalcídio José Ramos Pereira) e, finalmente, dona Isabel Trindade, honrada senhora negra pontapedrense, que deu a meu avô outra penca de mulatinhos, dos quais o caçula Adeflorindo (tio Adê) Pereira, que é mais criança do que eu.

Do avô Francisco (aliás, Celestino) Perez Varela (“seu” Chico Varela para a vizinhança do Curral Panema) basta que eu diga que ele foi emigrante da Galícia (Espanha) e herdou com a prima dele e minha avó materna Maria Joana Peres de Castro o sítio Serrame, no rio Canal (Carapanaoca). Lugar de comércio ao tempo da Borracha, onde meu avô foi dono duma memorável igarité, pilotada pelo incrível preto contador de casos encantados, o Amâncio Costa; chamada “Aracy” e construtor do barco da discórdia batizado “San Thiago”. Este barco da ruína na “quebra” da Borracha virou canoa “Africana”, da Casa da Beira, propriedade do senhor João Ramos da Silva, bom português, patriarca de família pontapedrense; e por fim o tal barco a vela dos sonhos de meu avô virou geleira a motor “São Judas Tadeu”... Se ainda existe, não sei. Quando mestre Parriba era vivo conversamos muito sobre a história das principais igarités do Itaguari (cada uma delas com a sua sina particular)... “Caripirá”, “Resistência”, “3 de Outubro”, “Africana”, “Dinoca”, “Thetis”, “Sincera”... “Terezina”... “Flor de Maio”, “Patativa”... No tempo das igarités, quem mandava era o vento e a maré, a canoa e o piloto paresque eram uma coisa só feita de carne, sonho e madeira lavrada em estaleiro por mestre carapina de fama.

Agora habitando o tempo da Cidade Velha minha Itaguari (Ponta de Pedras) mora comigo na Marambaia, às margens do Igarapé São Joaquim na bacia do Una. Ela estará sempre emendada ao Fim do Mundo e à ancestral pedra do Ver-O-Peso donde se arrima na Terra Firme, por via do canal do Carnapijó (Barcarena), em Belém do grande Pará: mar de água doce aonde o rio Marajó-Açu vai inventar travessias da baía e porfias de igarités imaginárias.

Agora aquele tempo de infância vai atravessando o largo rio das recordações e porfiando com o mito à ilharga da cobra grande Boiúna: mistério profundo ancorado no porto lendário à beira da pequenina Ilha do Coati. Ai de mim! Talvez por que este rio misterioso, não sei qual fado; me deixou escapar de morrer afogado quando eu era apenas um menino ribeirinho sem eira nem beira, fiquei eu na obrigação de inventar, com ele, outro Gânges de lendas sagradas e casos sem par. Com que uma certa “Vilarana” foi se formando pelas margens, furos e ilhas encantadas da história geral. Claro, eu escrevo pra todos e pra ninguém como convém a qualquer caboco contador de “causos”.

Quem sabia de histórias iguais caiu no esquecimento ou já morreu. Por isto quem calejou os dedos com a caneta e catou milho na máquina de escrever, hoje é aprendiz da internet, para dizer a mesma coisa de sempre. Não há tristeza quando o sol já vai entrando no crepúsculo da vida, rumo ao Araquiçaua mítico; lugar sagrado da “Terra sem Mal”; onde a memória dorme no engenho de novas manhãs. A certeza de que ainda haverá um amanhã acalenta novos sonhos.

Mais perto do que dantes, quando sozinho o caboquinho vencia estirões do grande Marajó a remo; as remadas no rio eletrônico aproxima nossos corações e nossas mentes. Um abraço do Zé. Feliz Ano Novo.

2 comentários:

Bel Fares disse...

Obrigada por este texto memorialista da fala do teu coração, Varela. Junto com o desejo de um feliz natal e um 2011própero a esperança de dias melhores para o nosso Marajó.
Abraço, Bel

rdiaspp disse...

Parabéns pelo texto, principalmente pelas recordações de Ponta de Pedras. Tenho observado que aos poucos nossa cultura está sendo esquecida, não vejo continuidade ao patrimônio deixado por Dalcídio Jurandir e outros caboclos que se não escreveram falaram, contribuiram de alguma forma para a riqueza do nosso falar, que é único no Brasil. Eu tenho procurado, ainda que modestamente, relembrar nosso linguajar, através de pequenos textos que publico em www.rdiaspp.blogspot.com ( o pp que dizer de Ponta de Pedras). Quando puder dê uma passada por lá. Um abração e continue escrevendo sobre nosso povo.
Raimundo Dias Pereira.